segunda-feira, 19 de maio de 2014

Crônica: As dores de uma Unidade Básica de Saúde

Foto: site visaooeste.com

POR ANDRÉ HENRIQUE
O dia ensolarado não foi capaz de fazer o casaco e o gorro dispensáveis. Agasalhado, dirijo-me ao maior posto de saúde da cidade: a Unidade Básica de Saúde do Atalaia. Distante cerca de quarto quilômetros da minha casa, não demoro mais que meia hora para chegar utilizando transporte público. Um ônibus de linha metropolitana, já que essa é a melhor opção na cidade – a menos que você queira ser refém dos operadores do Transporte Alternativo Municipal, e sua morosidade, ou esperar, incansavelmente, a aparição de um ônibus municipal regular.
Há cinco dias estou com dores por todo o corpo. Dos tornozelos aos dedos da mão, o incomodo é oscilante. Chego ao posto de saúde por volta das duas da tarde. Estou perdido, em função das modificações realizadas no prédio desde a última vez que estive por lá. Procuro o display de senhas. Pego a de número 056. No painel, a marca de número 948 indica-me que são mais de cem pessoas à minha frente buscando atendimento para os mais variados sintomas.
À procura de um lugar para sentar, olho todo o saguão. Todos os cerca de 20 lugares estão ocupados. Em geral, senhoras e crianças ocupam os acentos. O clima bucólico é presente por todos os lados da grande recepção. Nas paredes, outros se recostam a fim de encontrar uma posição mais confortável para a longa espera até sua senha ser contemplada no painel. Com minha revista em baixo do braço, dirijo-me à sala de espera do Raio-X. Lá encontro um local para sentar.

A edição 91 da revista piauí, é a minha escolha para tapear o tempo na espera pelo atendimento. A leitura do ensaio de Otávio Frias Filho sobre Carlos Lacerda, jornalista, escritor e político brasileiro, é interrompida a cada berro do técnico em radiologia responsável por chamar os pacientes e entregar os exames. Em 20 minutos, oito pessoas entram na sala de radiografia, expondo a celeridade do tratamento aos pacientes de uma UBS. Na salinha de espera, assim como eu, outras pessoas recorreram ao espaço como abrigo para esperar a passagem pela triagem. Cansei. Permanecer muito tempo na mesma posição é cada vez mais difícil. Volto à recepção e o painel eletrônico havia adiantado pouco mais de 10 senhas.

Não comi nada desde a hora que acordei. Na UBS do Atalaia não há cantina ou lanchonete. Do outro lado da rua, dois bares e uma barraca disputam a preferência daqueles que, famintos, não tem outra opção para se alimentar. A aparência de taverna medieval dos dois primeiros estabelecimentos amedronta. Não me arrisco. A barraca de lanches e salgados, ao lado dos bares, também não passa credibilidade. Os salgados expostos na estufa geram certo temor à primeira vista. Avisto, mais à frente, outra barraca, do outro lado da rua, na calçada de uma escola municipal.

As esfihas, coxinhas e enrolados de frango e calabresa não tem melhor aspecto que o da barraca anterior. Como não há outra opção, decido ficar lá mesmo. Peço um enroladinho de calabresa que, prontamente, é jogado diretamente na bandeja do microondas. "Meu Deus, quantas coisas já não passaram nesse microondas? Quando será que essa bandeja foi lavada pela última vez? Ela não podia pegar um pratinho, algum suporte?" são perguntas que me faço enquanto peço uma lata de Coca-Cola. Sentado à mesa, termino de comer o enroladinho, e peço um pastel, "frito na hora", segundo o destaque pintado na parede da barraquinha. Depois de me alimentar, pago a conta e volto para o posto de saúde.

Antes de entrar na recepção, fico ainda uns 10 minutos do lado de fora. Continuo a leitura da piauí no estacionamento, sentado em uma espécie de calçada estreita à beira de um prédio novo, vazio. Ao irromper a sala da recepção novamente, avisto o painel eletrônico, percebo que ele já foi zerado e que cinco senhas novas já foram chamadas. Faltam apenas 41. Dirijo-me novamente à sala de espera do Raio-X. Neste momento já havia terminado o ensaio sobre Lacerda e estou imerso em uma peça de teatro escrita em 1968, inspirada no livro O Alienista, de Machado de Assis. As falas irreverentes de A Lata de Lixo da História, de Roberto Schwarz, me levam para um tempo remoto. Nem os gritos o técnico em radiologia, nem o painel eletrônico, conseguiram tirar minha atenção do texto dessa chanchada carregada de críticas ao governo ditatorial dos militares no Brasil.

É somente após terminar a leitura de toda a cena da peça que volto à recepção. Faltam apenas 17 números para a minha vez, no entanto, tenho que ficar em pé. Em cinco minutos surge um assento vago. Aproveito para me sentar. Ao meu lado uma senhora discorre para outra sobre os dramas de seu primeiro casamento. Percebo que a história já havia chamado a atenção de uma terceira senhora que, sentada na fileira da frente, mantém o corpo virado para trás e os olhos fixos na narradora: uma negra, cabelos curtos, blusa de lã alaranjada e óculos de armação grossa com lentes no estilo fundo garrafa.

Cabeleireira, ela conta seu ex-marido havia conseguido um barraco em uma favela da cidade. Um homem rude, que utilizava seu dinheiro apenas para sair e "encher a cara", enquanto ela tinha que ficar em casa. "Ele abria a geladeira e dizia: 'nossa, olha essa geladeira vazia. Eu tenho dinheiro, mas é para eu sair com as minhas negas! (sic)'", relata minha vizinha de espera. A senhora sentada ao lado, pontua sobre a falta de caráter de um sujeito assim. Ela continua dizendo que quando "entrou para a igreja" passou a receber uma cesta básica da instituição religiosa e, assim, o dinheiro que recebia no salão passou a sobrar. Aproveitou então para transformar o barraco em uma casa de alvenaria. Recebeu ajuda da família na mão de obra, mas seu ex-marido em nada ajudou.

Sabida de seu valor, entendeu que aquele homem não era a pessoa para continuar a ser seu companheiro. Relata que chegou a flagrá-lo consumindo crack no banheiro de casa. "Está incomodada? Vai embora. A casa é minha", dizia o fulano à mulher que, depois de pedir ajuda ao "Senhor", decidiu ir. Juntou suas coisas, seus móveis, e foi-se. No dia da mudança, seu ex ajudou-a carregar o caminhão; e sorria, feliz em ver-se livre para suas negas. Hoje, aos 50 anos, minha vizinha de espera está casada novamente e frequenta a igreja evangélica Paz e Amor. Acredita que, enfim, encontrou a felicidade. Minha senha é chamada. Para mim, a história chega ao fim.

Ao chegar ao guichê de atendimento, a recepcionista, em um ar afoito, solicita meus documentos. Passou-se duas horas que eu cheguei e só agora consigo dar entrada na UBS. Ela digita meus dados no computador, encontra meu cadastro no sistema de saúde, imprime um papel e pede para eu assinar. Pronto, já passei pela triagem, mesmo sem ter dito uma palavra. “Agora é só aguardar ser chamado”, ela me diz.

Enquanto ouvia a história da senhora, no saguão do posto de saúde, iniciei a leitura de um artigo de Göran Therborn sobre as lutas de classe, e as recentes manifestações pelo mundo. Um excelente artigo, aliás, que pode ser lido neste link. Continuo a lê-lo na sala de espera. Após meia hora, um grupo de dez pessoas tem seus nomes gritados por uma senhora mal encarada. Sou um dos chamados. Encaminho-me a uma ante-sala, que nada mais é que um corredor, para aguardar ser atendido. Mais dez minutos e meu nome é novamente gritado no corredor. Apresento-me e a senhora mal encarada diz: "pode entrar".

Não me lembro a última vez que havia ido a um posto do serviço público de saúde. Sempre que tinha algum mal estar, tomava um remédio por conta, ou simplesmente convivia com ele até que este, o mal estar, cansasse de me causar incomodo e fosse embora. Mesmo em dias que faltava ao trabalho, recusava-me a ir a uma UBS pois já conhecia a rotina desgastante desse lugar. Desta vez, rendi-me. Em função do grande tempo em que estou indisposto, e alertado quanto o surto de dengue que assola a região metropolitana, decidi arriscar-me nas mãos dos médicos do SUS.

Já eram quase três horas de espera e, enfim, eu ia falar com um médico. Na verdade, uma médica. Uma jovem, com aparência de ter menos de trinta anos. Muito bonita. Cabelos negros, lisos, pele clara e olhos castanhos protegidos por um óculos de armação fina, preta e discreta, transmitindo-a um ar de intelectual, de entendida do assunto. Cumprimento-a e em seguida respondo sua pergunta sobre qual os meus sintomas. "Doutora, estou há cinco dias com muitas dores no corpo. Dos pés às pontas dos dedos das mãos, tudo dói." digo. Ela pergunta sobre dores de cabeça, respondo que também tenho tido algumas vezes e que, durante esses dias, tomei alguns analgésicos, mas que as dores vão e voltam. Sou questionado sobre febre e digo que não.  Ela pede para eu abrir a boca dizer "A". Pronto.

Em três perguntas ela me receita uma injeção. Depois de três horas aguardando ser atendido, tive o prazer da atenção da médica por cerca de 30 segundos. Saio do consultório sem saber meu diagnóstico - se é que é possível ter um em uma consulta de 30 segundos -, coloco minha ficha em uma caixa de acrílico e sento em outra sala para esperar a aplicação da injeção.

Depois de mais 20 minutos, distraído pelo artigo na piauí, ouço meu nome ser gritado mais uma vez. Após horas sentado, aguardando para ser atendido, as dores no corpo haviam aumentado. Caminhei com certa dificuldade pelos cinco metros que me separavam da sala de medicação. Demorei tempo suficiente para ouvir a enfermeira berrar meu nome mais duas vezes. Ao me ver, a enfermeira sorri, não sei se por simpatia ou ironia. Pede que eu abaixe um pouquinho a borda de minha calça. Diz para eu relaxar e aplica o medicamento.

Não senti a aplicação, mas, antes que eu pudesse sorrir por passar ileso à agulha, o remédio começa correr pelo corpo e causar uma dor indescritível. Sinto como se minha perna direita estivesse paralisada. Mancando, pego minhas coisas e saio. De fato, ao receitar esta injeção, em nada importava meu diagnóstico. A dor que ela proporciona é capaz de suplantar qualquer outra, já que, não é possível sentir mais de uma dor no corpo ao mesmo tempo e a mais forte anula as outras. Desse modo, sai do posto de saúde e dirigi-me ao ponto de ônibus, já com o dia em crepúsculo, sem a dor generalizada pelo corpo, mas com uma dor única, mais forte, produzida pela minha petulância em procurar uma solução no serviço público de saúde.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Para Sempre, Ayrton Senna do Brasil!


Nunca me esquecerei daquela quarta-feira ensolarada, porém, no coração de muitos brasileiros, nebulosa. Nunca me esquecerei das motos da polícia (que parecia dos filmes) à frente de um caminhão do Corpo de Bombeiros, percorrendo as ruas de São Paulo; essas abarrotadas de gente observando, estarrecidos, buscando uma espreita para ver se aquilo era realmente verdade, se aquilo havia mesmo acontecido. As imagens do "canal 5", que levavam às casas do Brasil inteiro a dor, a tristeza e o pesar nunca saíram da minha memória. Foi assim, sentado no chão da sala da casa da minha avó que acompanhei a despedida do corpo de Ayrton Senna da Silva, o Ayrton Senna do Brasil, como ouvia o "cara da TV" chamá-lo aos domingos de manhã. A cena de minha mãe colando folhas de jornal na janela da sala, amostras para a rua, com manchetes e títulos que relatavam a partida do piloto de Fórmula 1 é, sem dúvidas, a imagem mais marcante que tenho daquele dia do adeus, e sempre é a primeira que me vem à cabeça quando me lembro desse ídolo nacional.

No ano inicio dos anos 90 as coisas não eram como hoje. Não havia uma televisão em cada cômodo da casa. Na sala, as atenções da família se voltavam para aquela tela de tubo aos domingos de manhã. Não ouvíamos falar de Ferrari. A grande Scuderia não era o que nos atraia para a frente da TV. Era outro carro vermelho que chamava a atenção. Vermelho e branco; com um logo dos cigarros Marlboro que o tornava inigualável. Aquele capacete amarelo com uma listra verde e outra azul, daquilo me lembro bem. Como esquecer? A última volta, já com a corrida encerrada, pilotando com apenas uma das mãos; a outra levantada, com a bandeira do Brasil em punho, lembrando da sua terra tupiniquim no esporte dos milhões. Essa imagem eu consegui ver algumas vezes, em cores da TV, enquanto um som era emanado dos auto-falantes do aparelho. Um tan-tan-tan inesquecível, que chega a arrepiar cada vez que é tocado novamente nos últimos 20 anos.

Vocês podem achar estranho eu relatar isso se nasci em 1989. De certo, em 93, tinha apenas 3, 4 anos. Sim, era essa minha idade, mas as memórias são reais. Tão reais quanto o meu estranhamento em ver aquele capacete amarelo, verde e azul, em um carro diferente no ano de 1994. Aquele carro azul... Aquela Williams. Pelo que tinha acontecido em 94, a minha reação quando o piloto Jean-Jaques Villeneuve perdeu o campeonato em 1997 foi de alegria, mesmo tendo acontecido por um jogo sujo do Schumacher, com sua Benneton. Fiquei feliz porque ele perdeu com a Williams. Perdeu com aquele carro azul. Ah, como eu odiei aquele carro azul. "Devia ter ficado com o vermelho", eu disse dias após o acidente que levou o cara.

Em 1º de maio de 1994 eu não compreendi o que havia acontecido com a Williams de Senna. Aliás, por anos fiquei sem entender o porquê ele não tinha feito a curva; o porquê ele havia batido; e partido. Em 4 de maio de 1994, eu descobri o que é se emocionar; descobri o que é chorar sem ter levado uma chinelada de sua mãe por ter feito uma arte. Aquela quarta-feira não sairá de minha memória. Com os olhos crivados na TV, as imagens da TV Globo de uma Avenida Morumbi silenciosa e de um Cemitério Morumbi lotado de anônimos, de famosos, e daquele carrinho elétrico carregando o caixão com o corpo de Ayrton Senna, ficaram eternizadas em minha mente. Embora triste, com sorte, para mim, aquela foi a despedida apenas do corpo de Ayrton, pois da alma dele e do espirito vencedor do nosso campeão eu nunca me despedi.

Sempre, Ayrton Senna do Brasil!